sábado, 6 de julho de 2013

Doce Dacy

Ela me parou e começou a contar:

“Eu era nova na vizinhança e tinha me divorciado recentemente. Enquanto eu terminava de desempacotar as coisas da mudança, minha filha de sete anos brincava no pátio. Eu tinha acabado de me mudar para um casebre em uma cidadezinha deserta.  Não tinha uma vizinhança muito... Próxima... Isso se é que eu possa dizer que existia uma vizinhança... A distancia de uma casa para outra era grande.

Ao entardecer eu já tinha acabado de desempacotar as coisas da mudança , então, chamei minha filha pra dentro. Ela apareceu com um sorriso reluzente estampado no rosto e estava histericamente feliz. Os lindos olhos verdes brilhavam de tanta felicidade. Ela me disse que uma senhora muito velha havia passado e tinha lhe presenteado com uma boneca. Ela me mostrou a boneca e não era uma coisa tão ruim. A boneca era encantadora. Ela tinha cabelos ruivos, lisos, longos até a cintura. Suas mãos tinham uma textura tão... agradável... Sua pele era alva, macia, sedosa.  A boneca era linda, porém, eu não pude deixar de notar que faltavam algumas partes no corpo da boneca, ela não tinha dedos nos pés, nem dentes, mas o mais notável para mim: Ela não possuía olhos.”

— Moça, eu não tenho tempo para ouvir histórias. Se não se importa, tenho que ir trabalhar. —Interrompi a moça.
A moça pediu-me um pouco mais de atenção e disse que não gastaria muito meu tempo. Então sentei-me na calçada, ao lado da moça que havia me parado no meio do caminho do meu trabalho e ela continuou com sua história:

“—Dacy! — Disse minha filha — O nome dela é Dacy! Foi a velha que me disse.
—Então vá por a Dacy no sofá. Está na hora de tomar banho.
Minha filha pôs a boneca no sofá, em frente à TV e foi tomar banho no andar de cima. Enquanto eu preparava o jantar ouvi minha filha gritar no andar de cima. Larguei tudo o que eu estava fazendo e corri desesperada em direção ao banheiro. Quando cheguei lá minha filha estava encolhida no canto e apontando para a parede.
— UMA ARANHA!!! Mata, mãe, por favor!
Eu matei a aranha e acalmei minha filha, deixei ela no banheiro pra terminar o banho e desci para terminar a janta. Quando cheguei à cozinha tudo estava como eu havia deixado, exceto a boneca que estava jogava no chão próxima à geladeira e havia uma faca no chão próxima à boneca. Ignorei. Tudo ocorreu normalmente no resto do dia. Na hora de dormir eu pus minha filha na cama e a boneca ao lado dela e fui pro meu quarto. Minutos depois de eu ter deitado, pude ouvir risadas vindo do quarto de minha filha. Levantei-me e fui ver o que estava acontecendo. Ao me aproximar do quarto, pude ouvir minha filha agradecer. Ela simplesmente disse “Obrigada”. Chegando ao quarto de minha filha, eu a vi sentada no chão em frente à boneca.
— A Dacy disse que meus olhos são lindos, mamãe.
— Oras filha... Ela nem tem olhos... Como ela poderia te enxergar?
— Não sei. Ela só disse...
Coloquei minha filha na cama e a boneca junto a ela.  Durante a madrugada fui acordada por uma voz doce:
— Posso dormir com você? Tive um pesadelo.
— Tá bem.
Senti suas pequenas e frias mãos em minha perna, subindo pela cama. Ela pôs-se abaixo dos lençóis, deitou-se atrás de mim e me abraçou.
Quando eu acordei, eu estava sozinha na cama. Fui checar no quarto dela. Ela estava deitada em sua cama e a boneca estava jogada ao chão. Deixei minha filha na cama, dormindo, e saí pra comprar coisas pro café da manhã. Não havia problema em deixá-la sozinha, pelo menos era o que eu achava. Quando eu voltei, minha filha estava na cozinha com uma faca apontada pro seu olho.
— FILHA!—Berrei enquanto corria pra tirar a faca das mãos dela e a abraçava— O QUE ESTÁ TENTANDO FAZER???
— A Dacy. Ela pediu meus olhos emprestados. Mas tudo bem. Ela vai me devolver depois.”

—Espera, senhora... Isso é verdade?— Eu estava cada vez mais intrigado
—Calma, deixe-me terminar. —Disse a senhora. — “ Eu peguei a boneca furiosamente e a joguei na lixeira em frente à minha casa. Nesse momento uma senhora muito velha passou e disse:
—Dacy não gosta de ser ignorada.
Ela não disse mais nada, apenas caminhou até desaparecer entre a névoa matinal que cobrira aquele lugar. 
Durante a noite eu acordei com som de passos pela casa. Os pisos de madeira rangiam e os passos quebravam o silêncio da madrugada com um eco que percorria todo o andar de cima. Levantei-me para checar e os sons dos passos sumiram. Quando fui ao quarto de minha filha elas estavam lá sentadas na cama.
—MAS O QUE DIABOS ELA ESTÁ FAZENDO AQUI? PORQUE VOCÊ A TROUXE DE VOLTA? — Reclamei com minha filha.
—Não fui eu, mãe. Não fui eu.
Nossa, que clichê. Quão burra sou eu ao ponto de deixar de acreditar em minha filha? Eu apenas a deixei no quarto com a maldita boneca e fui dormir. Na mesma madrugada, pouco mais tarde, fui acordada por uma voz doce:
—Posso dormir com você? Tive um pesadelo.
Eu já estava morta de sono, e sem nem pensar, respondi:
— Claro.
Ela, da mesma forma, deitou-se atrás de mim, abraçando-me. Quando acordei, eu estava sozinha na cama novamente. Era sexta feira e minha filha iria passar o final de semana com o pai. Logo após o café da manhã eu a levei para a estação ferroviária e voltei pra casa.
Eu estava incomodada. Aquela aberração estava ali. Sentada no sofá, como se estivesse me monitorando. O fato d’ela não ter olhos me agonizava.  Só de olhá-la já me provocava calafrios. Eu tinha que ver o que havia de errado com aquela boneca. Minha curiosidade era imensa. Peguei a boneca, carreguei-a. Ela era mais pesada do que eu pensava. Acho que a raiva não me deixou perceber seu peso na primeira vez que a carreguei.  Os orifícios onde deveriam estar os olhos eram profundos. Grandes buracos profundos e de cor vermelha, e por dentro, parecia ser... carne...”
—Mas era uma boneca, minha senhora! — Exclamei confuso
—Deixe-me terminar. — Disse a velha.
“ Resolvi procurar mais bizarrices. Virando e revirando as camadas e mais camadas de seu vestido. Pareciam aquelas roupas das mulheres de época. Na perna esquerda tinha uma mancha na pele, similar a um sinal de nascença de uma sobrinha minha que faleceu ainda criança. Até hoje não sei o motivo de sua morte. Ao subir mais a minha mão por debaixo do vestido, senti um pequeno volume na área da virilha. Subi o vestido dela, eu estava espantada, era uma cicatriz enorme que a rodeava toda a perna. Eu larguei a boneca no chão imediatamente e dei as costas. Ouvi um ruído e quando virei para checar, a boneca já não estava mais lá. Ouvi um grito de pavor e medo vindo do andar de cima. Fiquei na sala, tentei me distrair, ouvi musicas, assisti TV, mas nada tirou minha mente da maldita boneca.
Eu subi as escadas e fui em direção ao meu quarto. Eu estava morta de sono e precisava dormir. Antes de me deitar, procurei pela boneca. Assustei-me ao vê-la sentada na cama de minha filha. Tranquei a porta do quarto de minha filha e fui dormir.
Durante a madrugada, fui acordada por uma voz doce:
—Posso dormir com você? Tive um pesadelo. ”

—ESPERA SENHORA! — Interrompi a velha — Mas sua filha não estava com o pai?
—Pois é, meu jovem... Foi tarde demais quando eu notei isso...
“Ela subiu em minha cama e deitou-se atrás de mim, abraçando-me. Quando me dei conta do que estava acontecendo, pulei da cama, gritando, horrorizada, saí de meu quarto correndo e ao olhar pra trás só pude ver a maldita boneca sorrindo. Eu saí de casa desesperada. Passei a noite na estação ferroviária, sem dormir. Aquela estação deserta, escura e imunda era mais segura do que minha casa com aquele monstro lá dentro.
Pela manhã meu celular tocou. Era meu ex-marido:
— Oi. Sou eu. É que ocorreu um imprevisto e eu não poderei ficar com nossa filha nesse final de semana. Onde você está? Eu já estou em sua casa.
— Eu estou na estação há um bom tempo. Como agente não se viu aqui?
—Eu vim de carro cm um amigo meu. Olha, eu estou atrasado pro meu compromisso. Posso deixar nossa filha aqui com a amiguinha dela te esperando?
Eu já estava aflita e não conseguia mais pensar em nada. Minha alma tremeu quando ele falou isso... Minha filha não tinha nenhuma amiga naquela cidade.
—Amiguinha? Que amiguinha? — Perguntei quase entrando em desespero.
— É uma ruivinha, do tamanho dela. Ela usa umas roupas meio estranhas, tipo de época... Engraçado... Ela ta usando uns óculos-escuros igual ao que eu te dei no verão retrasado.
—SAIA DAÍ COM A NOSSA FILHA AGORA!
Eu larguei o celular e corri o mais rápido que pude em direção a minha casa. Embora, quando cheguei foi tarde demais. Meu ex-marido estava morto, ensanguentado, Minha filha, próxima à cozinha, no chão, ensanguentada e seus olhos haviam sido arrancados. A boneca, bem... Ela não estava mais lá. ”
— Chega, senhora. — Interrompi novamente a velha que me contava a história — É demais pra mim.
— Tudo bem. Pode ir. Desculpe o incômodo.
Eu fiquei um pouco nervoso e perturbado sobre a história que a senhora havia me contado. Resolvi ir pra casa. Eu não estava com mente pra trabalhar... Quando cheguei em casa, minha filha correu em minha direção. Ela tinha uma boneca em mãos. A boneca era encantadora. Cabelos ruivos, lisos longos até a cintura, pareciam ser reais. Sua pele era alva, macia, sedosa. Ela tinha um lindo par de olhos verdes que brilhavam. A boneca era linda, porém eu não pude deixar de notar que lhe faltava algumas partes no corpo. Mas o mais notável, pra mim, ela não tinha dentes.
—Foi uma velha que me deu essa boneca. Ela disse que o nome da boneca é Dacy.

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